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Foto do escritorAlessander Raker Stehling

Discurso sobre a servidão voluntária de Étienne de La Boétie: uma reflexão contemporânea

Atualizado: 8 de ago. de 2023

“Pobres e miseráveis povos insensatos, nações obstinadas em vosso mal e cegas ao vosso bem! Deixais levarem embora o mais belo e claro de vossos ganhos, saquearem vossos campos, roubarem vossas casas e vos desproverem das posses antigas e paternas! Viveis de modo a não poder dizer que algo vos pertença; é como se considerásseis grande sorte arrendar vossos bens, famílias e vidas; e toda essa degeneração, esse infortúnio, essa ruína, vem não de inimigos, mas de um inimigo só, aquele cujo poder é concedido por vós mesmos, por quem ides tão corajosamente à guerra, por cuja grandeza não recusais a própria morte. Aquele que tanto vos domina não tem senão dois olhos, duas mãos e um corpo, e em nada difere do homem ordinário de nossas grandes e infinitas cidades, exceto pela vantagem que vós lhe concedeis para vos destruir.” (Lá Boétie, Étienne de, Discurso sobre a servidão voluntária — São paulo: Edipro, 2017, p. 41–42)


Étienne de La Boétie (1530–1563) escreveu o seu famoso livro “Discurso sobre a servidão voluntária” aos 18 anos. Ensaio este que influenciou grandemente Montaigne, Rousseau e Hume, sendo considerado um dos primeiros escritos importantes sobre o conceito de desobediência civil.


Veja que ele usa toda a sua jovialidade e rebeldia para questionar uma única coisa: 𝐩𝐨𝐫 𝐪𝐮𝐞 𝐚𝐬 𝐩𝐞𝐬𝐬𝐨𝐚𝐬 𝐬𝐞 𝐬𝐮𝐛𝐦𝐞𝐭𝐞𝐦 𝐚̀ 𝐚𝐮𝐭𝐨𝐫𝐢𝐝𝐚𝐝𝐞 𝐝𝐞 𝐠𝐨𝐯𝐞𝐫𝐧𝐚𝐧𝐭𝐞𝐬 𝐭𝐢𝐫𝐚̂𝐧𝐢𝐜𝐨𝐬, 𝐦𝐞𝐬𝐦𝐨 𝐪𝐮𝐚𝐧𝐝𝐨 𝐧𝐚̃𝐨 𝐬𝐚̃𝐨 𝐨𝐛𝐫𝐢𝐠𝐚𝐝𝐚𝐬 𝐚 𝐟𝐚𝐳𝐞𝐫 𝐢𝐬𝐬𝐨 𝐩𝐨𝐫 𝐦𝐞𝐢𝐨 𝐝𝐚 𝐟𝐨𝐫𝐜̧𝐚?


É nítido que esse texto é tão fresco quanto na data de seu lançamento, em 1548, pois muitos governantes regem seu povo de forma dura, egoísta e insensível. Talvez venha em sua mente países como a Coreia do Norte, Rússia, China, Venezuela ou Cuba, no entanto, mesmo aqui no Brasil — em nosso país — temos consciência de que os estadistas criam leis que lhes favorecem constantemente. Não importando se o governo é de direita ou esquerda.


De fato, segundo o IBPT, o brasileiro precisa trabalhar 151 dias só para pagar impostos. O “Impostômetro”, aferido do início do ano até o meio de fevereiro, mostra-nos que já pagamos mais de 426 bilhões em impostos. Apesar destes números serem tão impressionantes, alguns países — França, Dinamarca, Bélgica, Suécia… — possuem tributos maiores que os nossos, entretanto, ninguém pode negar que no Brasil este dinheiro arrecadado — às custas de grande suor do povo — raramente é utilizado para o benefício da população. Logo, podemos dizer que os brasileiros, desde muito tempo (possivelmente desde sempre), são governados por líderes tirânicos, que pouco se compadecem com as dores do nação.


Mas, voltemos a nossa conversa, da qual quase me perdi: “a primeira razão pela qual os homens servem voluntariamente é porque nascem servos e assim são criados. Disso resulta outro fator: sob o poder de tiranos as pessoas se transformam com facilidade em covardes e afeminados.” — e por gentileza, não me cancelem, pois essas são palavra do próprio Étienne de La Boétie.


Segundo Boétie, “não sentimos falta daquilo que nunca tivemos, a saudade só vem após o prazer[…]” desta forma, ele conclui que os costumes a que todos somos submetidos em vida, nos tornam mansos como os pássaros em gaiolas. A regra é simples: se nunca experimentei a liberdade, não sentirei falta dela.


Outro fator que nos leva a submissão voluntária, segundo La Boétie é o entretenimento “gratuito” entregue pelos governantes à população. É sabido que o rei Ciro evitou rebeliões do povo sem a guerra. Ele não queria destruir Sardes, capital da Lídia, após aprisionar seu generoso rei Creso. O povo estava a um passo de uma rebelião armada, o que levaria a maioria deles à morte. Para evitar o motim, Ciro estabeleceu bordéis, tavernas, jogos públicos e deu uma porção de alimentos e vinho regularmente para a população. Foi um sucesso, o povo ficou mansinho.


Percebemos que, mesmo hoje tal estratégia é certeira, todos conhecem o ditado popular do “pão e circo”. Os governantes entretêm o povo com migalhas e diversão (normalmente futebol e pequenas ajudas financeiras), eles dão pouco e exigem muito, nossa liberdade. É fato que milhões não têm outra escolha, estes utilizam tais recursos para sobrevivência, porém, diversos recebem tais auxílios sem necessidade. Agem desonestamente, privando muitos de um pouco de dignidade. Estes são tão cruéis quanto os tiranos citados acima.


Outro elemento utilizado para subjugar o povo é a religião. Muitos governantes alegam que foram escolhidos por Deus para governar ou conservar o reino. Diversos acreditam em tais falácias, tornando-se tão fanáticos e devotos, que lutam ou ofendem outros que não compactuam com suas crenças. Inúmeros religiosos apaixonados topam entregar a própria liberdade em troca de uma recompensa na “outra vida” — no mínimo questionável.


Este ensaio já se prolongou muito, no entanto, poderíamos levantar outros elementos que levam as pessoas à servidão voluntária: medo, coerção, falta de recursos, apatia, histórico de fracasso, etc.


Encerro esse texto com uma crítica forte do grande Étienne de La Boétie, que apresenta as consequências da união com os tiranos e entrega da própria liberdade a eles: “Que pena, que martírio é esse meu Deus? Ocupar-se noite e dia em agradar a uma única pessoa e mesmo assim temê-la mais que a qualquer outro homem no mundo; ter sempre os olhos vigilantes, os ouvidos atentos, para prever de onde virá o golpe, descobrir as armadilhas, intuir a ruína de seus companheiros, denunciar traidores, sorrir para todos e, ainda assim, temê-los, não ter um inimigo explícito nem um amigo confiável; ter sempre o rosto risonho e o coração apreensivo, não poder ser alegre e não ousar ser triste!”


Que pena…


— Alessander Raker Stehling

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“Ninguém pode julgar que, tendo nos criado todos iguais, a natureza tenha prescrito a alguém a servidão” - Étienne de La Boétie
“Ninguém pode julgar que, tendo nos criado todos iguais, a natureza tenha prescrito a alguém a servidão” - Étienne de La Boétie
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