Lembro-me, como se fosse ontem, da minha primeira sessão de terapia, há mais de oito anos. Lá estava eu, pontualmente, todas as sextas às 18h, no consultório da minha terapeuta, pronto para despejar todo o meu lixo emocional. Era um ritual: “Minha mãe isso…”, “Sabe o que minha namorada fez?”, “Meu trabalho é um inferno, deixa eu te contar…”. Semana após semana, o mesmo desfile de queixas e desabafos, como se cada sexta fosse uma “sessão de descarrego”. E quer saber? Eu adorava! Era um alívio, um desafogo genuíno. Eu me sentia como um mártir incompreendido, carregando o peso do mundo nas costas, e a terapia era o confessionário onde eu finalmente podia descarregar.
Só que, mal sabia eu, esse alívio estava pendurado por um fio — e esse fio finalmente se rompeu numa sessão marcante, que nunca vou esquecer.
Foi quando minha terapeuta, com aquele olhar clínico, calmamente me interrompeu no meio de uma de minhas ladainhas familiares e perguntou: “Você fala muito de Beltrano, Ciclano e Fulano há meses. Mas me diga, o que você está ganhando com essas situações?”
“Ganhando?” Eu repeti, confuso, franzindo a sobrancelha e lançando aquele olhar de incredulidade. “Como assim ganhando?” Na minha cabeça, a pergunta dela era uma ofensa! Será que ela não entendia que eu era a vítima aqui? Não havia ganho nenhum, oras! Eles eram os exploradores, e eu, o explorado. Eles eram os abusadores, e eu, o abusado. Eles, os vilões, e eu, o herói incompreendido… era simples, não?
Foi então que ela mencionou um conceito freudiano que me incomodou profundamente: o ganho secundário da doença. Freud falava sobre o prazer oculto que derivamos de situações dolorosas, como se nossas queixas nos dessem uma justificativa para não mudar, para continuar no mesmo lugar e, assim, não encarar o desconforto do novo, de entrar numa situação desconhecida, incômoda e desafiadora. De repente, ela sugeria que, talvez, eu estivesse colhendo algum tipo de benefício ao me agarrar ao papel de vítima. Talvez a autopiedade me desse permissão para não arriscar, para não me confrontar com mudanças e, acima de tudo, para manter meu mundo emocional confortável — mesmo que fosse um conforto doloroso.
Depois daquele dia, ela mudou sua abordagem comigo. Passou a me desafiar de uma forma que eu não estava acostumado — e que, francamente, me irritava. Ela começou a me mostrar que eu não tinha controle sobre os comportamentos dos outros, mas que eu podia, sim, mudar a minha própria realidade. Que, se eu escolhesse continuar reagindo da mesma forma, então parte daquela desordem era, sim, minha responsabilidade.
“Ok, sua mãe é manipuladora. Mas como você escolhe reagir quando ela age assim?”
“Sim, seu chefe é tóxico. Mas o que você vai fazer a respeito?”
Lá estava a pergunta incômoda e persistente, martelando na minha mente como aqueles despertadores antigos, algo que eu — te juro — tentei ignorar, mas não consegui. E, pouco a pouco, fui percebendo que, por mais que 99% do caos ao meu redor pudesse ser responsabilidade de outra pessoa, havia aquele 1% sobre o qual eu tinha poder. Era o meu 1%. O meu espaço de manobra. Minha chance de agir de forma diferente.
Mas havia um preço alto a pagar: eu tinha que abrir mão dos meus ganhos secundários. Eu teria que deixar de lado o prazer sutil de ser a vítima, o alívio de culpar os outros, a comodidade de permanecer em minha zona de conforto. Assumir a responsabilidade não era fácil, era um processo bastante doloroso — porque significava amadurecer e abrir mão de muitos ganhos infantis, daquelas desculpas reconfortantes que eu usava para justificar a minha imobilidade.
O resultado? Bem, foi surpreendente. Quando comecei a olhar para o meu 1%, as coisas mudaram. Eu aprendi a dizer “não” quando precisava, a estabelecer limites, a abandonar relações tóxicas, a assumir os meus erros sem me autoflagelar. E, o mais importante, comecei a criar um espaço de liberdade, autonomia e poder que, ironicamente, eu acreditava ter perdido ao longo dos anos.
A pergunta de Freud — “Qual é a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?” — ficou marcada na minha mente. Não se trata de culpar a si mesmo por todas as coisas ruins que acontecem, mas de reconhecer que temos poder e autonomia para responder a elas de maneira diferente. E, às vezes, é esse pequeno 1% que faz toda a diferença entre uma vida estagnada e uma vida que evolui.
Então, pergunto a você: Qual é a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa? Que parte do caos você está disposto a transformar, se tiver a coragem de abrir mão do prazer oculto de ser vítima e assumir as rédeas da sua própria história?
— Alessander Raker Stehling
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